sábado, 21 de janeiro de 2023

cartografia 44 (será?)

Súbito – sempre assim – sou acometida deste estado a um só tempo volátil e oceânico, ou antes, suspenso como uma cordilheira que nascesse por dentro. Súbito, dou conta destes pés que me caminham, das minhas dobras úmidas que sabem meu nome e minha sorte, das juntas que cantarolam, das minhas mãos que conhecem encruzilhadas e muitos mistérios. É como se encontrasse no mei' da rua aquela mulher que eu fui, irrecusável e fácil, oblíqua e sanguínea, e lhe beijasse a boca, demoradamente. Nesta cidade cheia de azuis, nesta noite bonita lá fora e aqui dentro, debaixo da minha pele, no céu da minha boca que pulsa, aquele cavalo sem domar, um diamante bruto, sete cores, água e vento. E nenhum verbo fugidio.

domingo, 31 de julho de 2022

carta para helena e sérgio

Vocês não sabem, mas eu tenho um repositório chamado As cartas ridículas, que eu só sei mesmo escrever cartas de amor. Vocês também não sabem, mas eu tenho uma enorme dificuldade em saber o meu tamanho – pra mais e pra menos – mistura estapafúrdia de excesso de vaidade e auto-estima destruída, então compro sapatos apertados e roupas grandes demais. Ó meu falatório, o que eu vou dizer é que ontem eu estava tão emocionada.

Vocês não sabem, mas a Helena povoa meus sonhos (e pesadelos) desde um tempo ancestral, a amiga da amiga, o vestido preto com florzinhas miúdas tão perfeito pros cabelos de fogo, o amor do meu então amor, olhos velhos, sorriso franco, botas, mãos trêmulas. Foi com a Helena que eu conheci o ciúme que dói doído no meio do peito. E foi com ela que chorei soluçado numa cobertura da rua Maranhão e entendi o que é ser atriz. Depois o ciúme morreu, que eu queria sentir só o amor simples e admirado. Cantei numa fita cassete quando o Carlos nasceu, hoje deixo o sol entrar, que é o que acontece quando Helena chega.

O Sérgio eu vi a primeira vez no Arena, O nome do sujeito, e meu peito caiu voando, era aquilo que eu queria ser. Santa Joana, A comédia do trabalho, Danton, Mercado do gozo, Equívocos, Visões siamesas, Maria, Georgette, Ney, Gustavo, Débora, Marcio, Walter, Lincoln. Mas a minha vida é de roldão, sempre um milhão de pratinhos nas varetas finas, rodando, caindo – sobretudo caindo, e eu cataploft, sanguínea, sorriso na cara de olhos derramados. Aquilo era o que eu nunca seria, a saudade do que eu não fiz, os sonhos de que escapei.

Ontem eu cantei pros 25 anos do Latão e eu fui arremessada pra longe-longe, fiquei boba como se não tivesse 49 anos, 30 deles em cima do palco. Vocês não sabem, mas o Latão é fogo e ferro na forja do que eu entendo por poesia. O que eu quero dizer é que mesmo eu não sabendo o meu tamanho, tenho a exata medida do que vocês são pra mim. Saibam que estar na sala de ensaio com vocês tem sido ouro sobre azul, areia movediça, espelho esmeralda, blim blim de orvalhada. Mas eu sou ridícula como as minhas cartas, dramática em demasia, e péssima atriz.

sábado, 28 de agosto de 2021

cartografia 43

não tenho nada de bonito pra dizer, de novo, eu me perdi do meu tempo, eu tenho a nítida sensação de que não tem mais lugar pra gente como eu, como nós, aquele fantasma da geração perdida é agora um gosto na boca, e você vai dizer que não, e eu vou responder que sempre soubemos que sim, mas é que teimamos tanto em fingir que a alegria desimportante e os encontros verdadeiros

terminar de ler édipo rei, acho que tenho um xerox da poética de aristóteles, todo linguista russo tem nome de vodka, dois textos sobre o teatro na grécia antiga, preciso ouvir as gravações pros ensaios que recomeçam na quinta e pensar no treino dos oitos atores incríveis do ricardo terceiro e a estreia é justo no dia da prova da luiza, serão dois meses desenhando pra divulgação dos festivais de piracicaba, faltou inscrever num edital que termina terça, passo doze horas por dia na frente dessa tela, o dinheiro do aluguel ainda não tá na conta, meu deus que horas que eu vou conseguir aprender a fazer a editoração pro ebook, segunda minha filha toma a primeira dose da vacina e eu faço radiografias panorâmicas, os vizinhos de cima acabaram de mudar, a geladeira nova faz tanto barulho que lembra o freezer do ó do borogodó, meu amor vai lançar um livro e ele está tão contente, eu não canto há tanto tempo que

nada me dói tanto quanto a injustiça e eu tenho medo de não

eu detesto fazer faxina e a verdade é que me acostumei embora chore ainda muitas vezes por semana

quinta-feira, 3 de junho de 2021

cartografia 42

Acometida desde o domingo por episódios de taquicardia ou ardência que de assalto alteram o ritmo e o movimento da minha respiração, acompanhadas de uma dor insistente no extremo do trapézio direito, e aos quais se sobrepõem estalos assustadores na articulação temporomandibular, concluo, tateando os escuros assombrados do meu coração, que passo por uma crise de ansiedade.

Choro de repente quando tento respirar profundo.
Choro de repente por qualquer coisa, ou nenhuma.
Não é ar que falta, é espaço que não tem.

Mais uma vez, uma foto denunciada por nudez.
Mais uma vez, me sinto inconveniente.
E a avalanche de memórias da mulherzinha vaidosa de auto-estima destruída tentando fingindo desejando ser a fraude que ela intimamente acha que é. Nesse desabamento, meu corpo resta em canto nenhum.

Sinto uma raiva violenta.

A avaliação de peso 2 de introdução aos estudos de língua portuguesa 1 é uma carta-reflexão, com as seguintes instruções: "Para organizar seus sentimentos e pensamentos com relação a essa matéria, você decide escrever uma carta para uma pessoa querida. Nela, você explica o que tem sentido durante as aulas síncronas e assíncronas e conta quais conteúdos achou mais interessantes e instigantes, quais pontos não ficaram claros, quais as inquietações elas provocaram e o que espera dos próximos encontros."

Diante de tão inacreditável ironia, eu nem sei por onde começar. 

terça-feira, 18 de maio de 2021

cartografia 41, do retorno

súbito, 30 anos depois, eu volto, e entre saussures, bandeiras e homeros, súbito estou eu penélope de mim mesma, esperando por mim, agulha e fios nas mãos, cada ponto uma ave maria, como minha vó crochetando infinitas toalhas de banquete, minha vó julia pereira pinto que esperou em silêncio por mais de 50 anos a hora de voltar pra casa de jesus de onde ela nunca queria ter saído pra casar e parir 14 filhos com meu vô joão que era neurastênico, minha vó julia de quem trago o nome e que foi enterrada de hábito irmã julia de maria, então viúva do meu vô joão pinto que aprendeu a ler e escrever sozinho e construiu uma gráfica e um jornal e que dá nome ao meu filho, ele e eu herdeiros em demasiada medida daquele homem e daquela mulher, então assim repentino, eu estou capotando na deriva da memória, sonhos e pesadelos, toda noite uma lembrança e uma promessa, a vaidade infantil, a impaciência envelhecida, e a aurora de róseos dedos me enfiando pra dentro do novelo pra sangrar na ponta da agulha e não esquecer, na carne, daquilo que eu não queria mais lembrar, a mãe que não consegui ser, a disciplina que não tenho, as faltas falhas erros desvios desencontros, o sofrimento que impingi, a vergonha, o abandono, a dor, a dor, adorador adora dor, é bem do olho desse redemunho que eu repentino volto, 30 anos depois, súbito

(30 anos, meu bem, não são 30 dias)

e descubro, alumbrada, que não endureci: eu sou aquelazinha ali que chora na aula de introdução aos estudos literários.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

cartografia 40

Exu acertou o pássaro ontem com a pedra que lançou hoje
e acertará, com a pedra que lançou ontem,
o pássaro que ainda não voou

Há 610 dias, em 28 de abril de 2019, eu invoquei Exu pra começar as cartografias. 

Nessa segunda feira 28 de dezembro do ano impredicável, chamo meu sentinela, novamente, pra, talvez, terminar.

Laroiê, meu pai.

Lá na primeira, eu escrevi:

Risco aqui a cartografia do meu corpo. Um corpo cruzado, atravessado e na travessia. Corpo-percurso, subversivo, resiliente, e que envelhece. Um corpo em busca do que já foi, e que quer lembrar o que será.

Não, eu não reabitei minhas carnes. Eu não dancei. Não estou muito contente com o que descobri. As marcas do meu corpo em sucessiva progressão não fazem de mim mais sabida e reconhecê-las não me deixa mais satisfeita. Não encontrei quase nada do que eu fui e me lembro bem pouco do que serei.

Estou mais velha, e só. 
Envelhecer é ajustar expectativas. 

Eu ia me despedir das cartografias, mas não consigo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

cartografia 39

Do chão não passa.

Tem a terra debaixo do pé. A canoa mole sobre o rio duro tem casco e paineiro, pra firmar. No mar pode não parecer, mas depois de toda água, sal e escuridão, tem o rés da areia ao fim do pouso lento. Até o poço mais sem fundo tem – um – fundo.

A dança imantada entre a gravidade e o umbigo encontra na superfície espelho, contorno e porto. Pássaros, aviões e foguetes têm na certeza do fim o impulso pro começo. As células que nascem siamesas permanecem irmãs mesmo depois de se repartirem milhares e milhares de vezes.

Pois que o chão do meu corpo está frouxo. 

Não tenho o onde cair. E não há de onde levantar voo. Todos os pesadelos irrompem como se a tampa dos meus infernos tivesse sido arrombada. Um corpo distensionado sem voz espatifado no ar. Entre-ser esgarçado de memória, genética e pavor. Areia movediça. Os destroços espalhados por aí.

Sem chão não passa.

domingo, 25 de outubro de 2020

cartografia 38

Há 3 semanas sem tomar pílula, meu corpo mudou. Ganhei 7 mil toneladas a menos. Sinto um incômodo ininterrupto na altura do corte da cesárea, e a depender do movimento, percebo aquele cisto que cresce no meu ovário direito. Hipersensíveis peles, mamilos, carnes e ouvidos. Meus peitos vão explodir, dóem as pequenas glândulas que moram dentro das axilas. Eu sei, são os hormônios e sua dança desnorteada depois de tantos anos de anestesia. Estou viva, vigilante e preocupada.

Descubro, assombrada – eu ainda ovulo. 
Chove pesado no domingo cinza e eu prefiro assim.

Lembro.
De uns versos bonitos e tristes tatuados neste repositório de amor ridículo. 
Que aprendi a andar no escuro e gosto do medo e de sentir o frio úmido na sola dos pés. 
Que choro muito, pra dentro e pra fora. 
Que meu corpo é bonito e macio, morada de tantas alegrias. 
Que tenho saudade da minha voz.

Meu coração é bruto, cavalo sem domar, e dou graças.


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

cartografia 37

Os projetos que desenho ficam tatuados na fina película que envolve minha medula espinhal do cóccix até onde a primeira cervical quase roça o osso occipital. É este mesmo tecido invisível que conforma os desejos, que têm por modo de operação subversiva o ardil da liquefação, dissolvendo-se dissimulados na corrente sanguínea para alcançar, quando menos se espera, os pequenos lábios, as pálpebras e seus líquidos umectantes, os tendões dos joelhos, até infiltrarem-se nas pontas dos meus dedos, que desenham. 

Projetos são garrafas ao mar. Muitas restam emudecidas nas areias profundas dos oceanos escuros. Tantas se estilhaçam chegando à praia e suas palavras escritas em papel fino afogam-se indecifráveis. Poucas completam a travessia, presente que deixa pegadas na areia. Desejos são pegadas de flores escondidas entre as páginas do livro preferido; teimosas, insistem o perfume, sobrevivem às intempéries, agarram-se na carne da memória, voltam sempre. Entre as garrafas e os olores obstinados mora o desígnio insondável que-o-gado-vai-ao-poço.

Na posta restante do meu coração dançam juntas, aos rodopios, três palavras mágicas - ora amantes, ora impossíveis:

Desenho: arte, plano, representação. Do latim "designo,as,āvi,ātum,āre": marcar, traçar, notar, desenhar, indicar, designar, dispor, ordenar; e derivado do latim "signum,i": sinal, marca.

Projeto: plano, esperança, arremedo, predeterminação, intenção, trabalho. Do latim "projectus,us": ação de lançar para a frente, de se estender, extensão.

Desejo: impureza, capricho, prazer, vontade, intenção, necessidade, pedido, esperança. Palavra de origem obscura, provavelmente do latim "desidĭa,ae": estar/permanecer sentado; mas com evolução semântica para o ócio, donde as acepções: inércia, indolência, repouso, prazer.




quinta-feira, 10 de setembro de 2020

cartografia 36

Súbito, meu corpo reclama meus partos.

João veio antes da hora pra me mostrar que não dava tempo de não entender. Aos 21 anos, enjoada durante os 6 meses em que me soube grávida, mais magra do que devia, com o enxoval mal começado, ele chegou urgente e sem pulmões, agarrou sua vida como fazem os teimosos e valentes: força descomunal, dedos longos e olhos imensos. Eu não vi o João nascer, estava atordoada e em desespero, sem entender por que meu corpo mandava embora aquele menino tão pequeno. Cheio de tubos, fios e esparadrapos, a gestação terminou do lado de fora, em 35 dias infinitos de uti, bomba de leite, corte cesariano infeccionado, derrame, alimentação parenteral, isolete. A minha voz cantou pro João incansavelmente, desde o caminho pro hospital até o depois do sempre. João veio na hora certa pra me fazer mãe.

Luiza veio antes da hora pra me mostrar que o tempo é o senhor mais bonito. Aos 30 anos, um casamento despedaçado, mais magra do que devia, metade da casa encaixotada de uma mudança que não vingou, sem enxoval nenhum, ela me amarrou no pé da vida e agarrou-se no meu útero ruim como fazem as valentes e teimosas: dança incansável, mãos fortes e olhos imensos. Depois de 2 meses em repouso caseiro e mais 4 semanas hospitalares horizontais, eu, taquicárdica de tanto remédio, tive coragem pra parir tão naturalmente quanto possível numa cadeira obstétrica fria sem poesia nenhuma. A memória mais linda dessa noite é o João pendurado na janelinha mágica, sorrindo ao ver a irmã ser limpa n'água, entre os panos azuis, sangue e placenta. A minha voz cantou pra Luiza incansavelmente naqueles 28 dias infinitos de hospital até o depois do sempre. Luiza veio na hora certa pra me fazer mulher.

Um filho e uma filha. Duas estreias. Dois ritos de passagem. Tudo aqui inscrito ecoando dentro de mim.

Sinto um pouco de raiva deste corpo que não foi e ainda não é muito amistoso comigo mesma, por vezes desobediente, inerte, irreconhecível. Mas agradeço, envaidecida, por sua generosidade e sua maciez (dentro e fora), casa que tece memória, voz, alimento e poesia. E, embora cansada, me orgulho da luta cotidiana que é ser quem eu sou.